Preservar hobbies e espaços de autocuidado, longe da exposição e da validação constante, é importante para o autoconhecimento e para dar sentido à vida
Uma tendência observada atualmente, impulsionada pela cultura do exibicionismo e das redes sociais, é a transformação de atividades simples e hobbies pessoais --que, a princípio, seriam restritos ao âmbito privado -- em conquistas ou bens de consumo para serem divulgados nas mídias sociais.
Ana Carolina D’Agostini, Mestre em Psicologia Educacional e Gerente de Conteúdo da Semente Educação, diz que vivemos em uma época em que até os momentos mais pessoais e relaxantes são frequentemente encarados como uma oportunidade de mostrar produtividade ou ter visibilidade.
“Um hobby que antes servia como fonte de prazer, criatividade e como um meio para se desconectar da realidade e das obrigações, hoje é comum que se transforme em um conteúdo instagramável. Então, essa linha entre satisfação pessoal e exibição pública tem se tornado cada vez mais tênue”, considera. “Uma atividade que devia ser mais espontânea e relaxante, por exemplo, acaba virando uma exigência que vai vir acompanhada de cobrança e comparações, porque tem que gerar um conteúdo para ser validado e ganhar likes”, completa.
Perda de significado
Leitura, culinária e práticas contemplativas, como meditação e yoga, são exemplos de atividades que, muitas vezes, nessa lógica, são esvaziadas de seu sentido original. “A leitura, que é algo muito solitário e reflexivo, pode acabar se resumindo em uma meta de leitura anual para fazer um post ou resenha para o Instagram e mostrar o quanto a pessoa lê”, comenta.
O mesmo ocorre com a culinária. “Cozinhar não é mais para se alimentar e partilhar aquele momento, mas para produzir um prato com perfeição, fotografar, editar e publicar, mesmo que você não goste daquela comida.”
Já a yoga, voltada ao interior e à introspecção, acaba se transformando em performance, com forte apelo visual. “Posar no meio da natureza e mostrar como a pessoa consegue fazer aquilo com o seu corpo foge totalmente da proposta original.”
Em relação às competências socioemocionais envolvidas, a gerente de conteúdo diz que acaba ocorrendo uma distorção das competências da família da “Abertura ao novo”, principalmente da curiosidade. “Ela vai se esvaziando no sentido de explorar e de criar para virar uma reprodução de tendências. Às vezes, nem paramos para nos questionar do que gostamos ou temos interesse em fazer, escolhendo o que vai gerar mais engajamento”, destaca.
Causas do fenômeno
Segundo Ana Carolina, esse fenômeno tem diversas causas. “Por um lado, há aspectos culturais que valorizam muito a produtividade. Então, é como se o valor de cada pessoa estivesse sempre ligado ao que ela está produzindo e ao fazer mais. Por outro, as redes sociais possibilitam muita visibilidade, transformando qualquer momento -- seja uma refeição, um hobby ou uma viagem -- em uma chance de ganhar atenção ou validação alheia.”
Além disso, as mídias sociais, mais do que nunca, funcionam também no sentido da monetização. “O que você faz pode virar um trabalho, seja a sua marca pessoal ou uma atividade que para você era de lazer.”
A especialista acredita que essa necessidade de exibição e de validação sempre existiu entre as pessoas, mas as redes sociais amplificaram essa cultura e tornaram essa demanda muito mais fácil de ser realizada.
“A validação externa passa a ser o objetivo, muito mais do que o prazer da própria experiência em si. E, para que isso funcione de maneira coerente com essa perspectiva, tem que haver uma estetização da vida cotidiana, com padrões de felicidade, beleza, leveza etc”, observa. “Se você quer fazer parte dessa rede, você precisa se comportar de determinada maneira para ter seu comportamento validado, ter engajamento e poder ganhar com aquilo.”
No que diz respeito às competências socioemocionais, ela aponta que o entusiasmo, competência da família do Engajamento com os outros, é afetado, porque a capacidade de experienciar e perceber alegria pode ser confundida com algo que é artificial e produzido.
Impactos emocionais
Ao transformarmos o lazer em uma meta a ser cumprida, os impactos emocionais resultantes desse processo são muitos e bastante profundos. “A comparação constante, a ansiedade sobre o quanto o conteúdo produzido vai ser validado ou não, a frustração por não ter o retorno pretendido e até os sentimentos de não pertencimento e de inadequação são alguns dos efeitos”, cita a gerente de conteúdo.
Esses fatores, de acordo com ela, comprometem muito a nossa capacidade de relaxar e de restaurar as energias e o prazer de estar em contato com algo que nos faz bem. “Assim, fica mais difícil reconhecermos os nossos próprios ritmos e o que estamos sentindo, porque acabamos entrando numa mistura de sensações e pertencimento que dizem muito mais respeito ao coletivo do que a nós mesmos”.
E pensando também nas competências da família da Amabilidade, ela ressalta que pode haver um exagero no desejo de agradar aos outros, se sobrepondo até às próprias necessidades, o que é mentalmente muito exaustivo.
Sociedade paliativa
Ana Carolina também vê uma conexão entre esse fenômeno e o pensamento do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han sobre a “sociedade paliativa”. O conceito se refere a rejeitar a dor e valorizar apenas o que é leve e agradável.
“Isso combina perfeitamente com as possibilidades das redes sociais. Quando mostramos momentos felizes, sorrisos e uma perfeição estética, acabamos muitas vezes camuflando frustrações, cansaço e dúvidas sobre o que sentimos e até mesmo sobre quem somos. E isso vai fortalecendo uma cultura da própria evitação emocional, ideia que Byung-Chul Han também traz com o conceito de sociedade paliativa.”
Todo esse contexto, segundo a especialista, acaba prejudicando o desenvolvimento de competências da família da Modulação emocional. “Modular as emoções é dar a justa medida para elas, aprender a nomear e lidar com perdas, angústias e frustrações, que nos fazem crescer emocionalmente.”
Ela explica que quando queremos a todo custo evitar esse tipo de sentimento, como se fosse algo ruim, já que não gera engajamento e não mostra o que é esperado nas redes sociais, perdemos uma chance preciosa de desenvolver a nossa modulação emocional e uma estabilidade nesse sentido. Não só no dia a dia, mas na nossa vida como um todo.
Espaços de lazer e de autocuidado genuínos
A gerente de conteúdo defende que, mais do que nunca, é preciso pensar nessa necessidade de validação permanente como um sintoma da contemporaneidade e olhá-la de maneira bastante crítica.
Para ela, preservar espaços de lazer e de autocuidado que sejam genuínos, longe da lógica de exposição e validação, é um grande ganho. “Parar para se perceber e ajudar as crianças e os adolescentes a se reconhecerem e saber quem são realmente, sem filtro nem plateia, e do que realmente gostam, é muito importante para esse senso de autenticidade e de pertencimento em relação àquilo que você está fazendo.”
Ela acrescenta que se questionar se tudo realmente precisa virar conteúdo é fundamental, porque o lazer diz muito sobre a nossa capacidade de estar presente e se conectar a outras coisas que não sejam relacionadas ao universo digital, mas sim ao presencial. “E isso traz muito sentido para quem a gente é e para a nossa vida”, conclui.